No dia de hoje o mundo
inteiro comemorou o Dia Internacional da Síndrome de Down[i]. Apesar de a data ser celebrada há sete anos, essa
foi a primeira vez em que ela foi oficializada pela ONU que a celebrou na sua
sede em NY com a conferência “Construindo o nosso futuro”.
E qual é a importância de se comemorar esse dia? Imensa, afinal até pouco tempo quando se pensava em SD se falava em estatísticas:
o número
de crianças que nascem com a trissonomia 21, o número de doenças relacionadas à síndrome, o percentual de aborto
provocado quando se tem o diagnostico precoce, a baixa expectativa de vida. Ações
como as de hoje mostram muito mais, mostram nossos meninos, meninas, jovens e
adultos superando essas dificuldades e participando de forma ativa na sociedade,
trabalhando, estudando, entrando para a universidade, participando de
campeonatos, dançando, publicando livros, estrelando filmes. Iniciativas como
essas reúnem profissionais de todas as áreas discutindo mecanismos que visem
melhorar a qualidade de vida de nossas crianças. Toda essa repercussão e esses
programas que mostram jovens felizes e autônomos me fez lembrar o Davi, um
aluno com SD que tive há quase 20 anos.
Um dia, o diretor da Escola
onde eu trabalhava nos deu uma notícia: a partir
da semana que vem vamos receber dois alunos com deficiência, um com Síndrome de
Down e um aluno cego. Ok, dissemos, mas quando começa o curso de formação para
trabalhar com esses alunos? Ah, disse ele, por hora não termos verbas para
isso, vocês vão trabalhando conforme o feeling
de vocês, nos erros e nos acertos e daqui a alguns anos quem sabe publicaremos
um livro com a nossa experiência. O Secretário de Educação me pediu e eu não
posso lhe negar esse pedido.
E foi assim que alguns meses
depois de iniciado o ano letivo Davi, com 13 anos, começou a estudar no 5º ano.
Perguntada, sua mãe explicou que eles moravam no interior, Davi frequentara a
APAE onde havia sido alfabetizado. Quando chegamos aqui fui atrás de uma APAE, disse
ela, porque eu preciso trabalhar e ele não pode ficar em casa sozinho, então
uma vizinha comentou que aqui a Prefeitura aceita crianças “retardadas” em
escola normal, como é mais perto que a APAE o matriculei aqui, fiquei surpresa
que ele vai para o 5o ano, pois ele é muito
burro, mas a orientadora pedagógica disse que ele era muito grande para estar
no primário.
Davi era um menino muito
esperto, mesmo com o contexto familiar e da pouca estimulação na escola
especial ele tinha conhecimento de terceira série. Comunicativo, educado, interessado, quando
ele me dizia com os olhos baixos que não valia a pena explicar-lhe uma vez mais, porque ele era muito
burro, eu sentia uma sensação de impotência por não poder ajudá-lo mais. Você não é burro Davi,
você só não teve a oportunidade de aprender como os demais, dizia eu para
tentar encorajá-lo a não desistir. Em pouco tempo
a maioria da sala o aceitou bem e a turma desenvolveu um sentimento de
proteção. Foi incrível a transformação da turma, eles se tornaram mais
tranquilos, mais pacientes e colaborativos, procurando não conversar durante as
explicações para poder ajudar ao colega. Mas os conflitos existiam, principalmente na
hora do recreio, quando as crianças das outras turmas riam dele chamando-o de “louquinho”,
de “retardado” e por aí afora, nessa hora os colegas o defendiam e sempre havia
uma briga.
Davi nunca teve estimulação
precoce na vida, começou a andar com quatro anos e ainda tinha um andar
inseguro, a língua era protusa o que fazia com que seu caderno sempre estivesse
molhado, usava óculos pesados, de lentes e armações grossas o que lhe dava um olhar
carregado, como se ele tivesse muito mais idade do que realmente tinha. Ele também
tinha problemas auditivos, provavelmente pela falta de tratamento das
recorrentes otites. Na hora da educação física ele não participava porque tinha
problema de coração, ficava comendo salgadinhos enquanto os outros meninos se
exercitavam, consequentemente ele era bastante gordo. Muitos pequenos do jardim
tinham medo dele e às vezes eu notava que as outras crianças o discriminavam não
pela SD em si, mas por sua aparência.
Hoje olhando para trás vejo que
poderia ter ajudado mais a Davi, mas na época fiz o que podia, ainda era
estudante do curso de Letras e tinha que compartir meu dia-a-dia com a
universidade, a escola e uma bolsa de iniciação cientifica, portanto não tinha
muito tempo. Mesmo assim lembro que li bastante sobre educação de crianças com necessidades
especiais (na época era essa a terminologia usada, mas como estou há muitos anos fora do Brasil não sei se ela
ainda esta em uso) e conversei com professores do curso de Pedagogia - Deficiência
mental. Foi nessa época que ouvi pela primeira vez a expressão Mediação da Aprendizagem
e tentei ser mediadora de Davi e do outro menino que era cego (esse não era meu
aluno no curso regular) em horário oposto. Eu era a única professora ACT (não
efetiva) na Escola, estava substituindo a professora de Português que pedira
afastamento por problemas de saúde, mas era uma das únicas que tentava ajudar a
esses meninos. Você faz isso por que não tem uma família para sustentar, diziam
alguns professores que eram contra a inclusão, alegando falta de tempo. Às
vezes penso que foi essa minha dedicação a esses garotos naquela época que me
deu anos mais tarde o merecimento de receber Adam como filho, por ele poderei fazer
tudo o que queria ter feito por aqueles meninos naquela época. Infelizmente o ano letivo acabou e a
professora efetiva voltou à Escola. Durante anos cada vez que via um garoto com
SD pensava no Davi e me sentia um pouco culpada por não haver ajudado mais a
ele, mas aos 19 anos a gente não tem as coisas tão claras e se deixa levar
pelos acontecimentos da vida.
A Síndrome de Down não é uma doença
e, portanto, não pode ser tratada, não tem “cura”, mas as complicações que vêm
dela sim são tratáveis. Por isso fico muito feliz que a medicina vem nos
últimos anos conseguindo avanços na intenção de melhorar a qualidade de vida
das nossas crianças, não fosse por essas pesquisas e avanços científicos, talvez
a estimativa de vida das pessoas com trissomia 21 ainda fosse a de 14 anos,
como foi na primeira metade do século passado. Como mãe eu quero propiciar o
melhor para meu filho, como faria caso ele não tivesse SD. Se um medicamento
pode controlar o seu hipo ou hipertiroidismo eu vou usá-lo, se uma cirurgia cardíaca pode salvar-lhe
a vida, ou em casos não tão graves, pode possibilitar que meu filho tenha uma
vida ativa, praticando esportes, evitando também a obesidade eu vou propiciar a
ele. Se mesmo com exercícios sua língua continua protusa e eu sei que algum
aparelho pode ajudá-lo a corrigir isso (lembro-me da carinha de
tristeza de Davi quando seus colegas o chamavam de babão), eu vou colocá-lo, se suas noites de sono são de má qualidade,
por causa da adenoide ou de sua anatomia facial e eu sei que uma cirurgia
poderá ajudá-lo a dormir melhor, eu vou providenciá-la. Se
no futuro um medicamento possa melhorar seus aspectos cognitivos, sua memoria
curta, sua facilidade de aprender eu vou oferecer a ele, pois até hoje não consigo
esquecer a carinha de frustração e de sofrimento do Davi quando ele necessitava
muito mais tempo para aprender o que as demais crianças conseguiam com muito
pouco esforço.
E faço tudo isso não porque
quero negar que meu filho tenha Síndrome de Down, por que quero “cura-lo”, por
que não o aceito como ele é, faço porque quero que um dia Adam tenha o direito
de andar com suas próprias pernas e, assim como fizemos seu pai e eu, possa escolher
o seu futuro.
Por isso acredito que
iniciativas como a do Dia Internacional da Síndrome de Down só vem acrescentar,
mostrar as nossas crianças e jovens em um papel ativo, oferecer palestras que reúnem
profissionais de várias áreas, intercambiar experiências
e principalmente ajudar a combater o preconceito são apenas alguns dos pontos que
fazem com que hoje em dia nossas crianças não sejam tratadas e ignoradas pela
sociedade, como foi Davi. Gostaria de ter estado em Nova York participando das
atividades, interagindo com tantos profissionais, conhecendo essa turminha que
foi representar o Brasil lá.
Acredito que mesmo buscando o
melhor para nossos filhos, não podemos nos desfazer do que somos e de como
vemos a vida. Adam tem pouco mais de um ano, estou no inicio dessa caminhada, mas
estou aberta ao aprendizado, pelos livros, com os outros pais e profissionais e
com o dia-a-dia do meu filho. Comemoro a vida do meu garoto a cada dia e hoje,
no dia 21, comemorei também a felicidade que vi na fala de cada pessoa com SD que
teve um espaço para se expressar e de seus pais, claro, pois como mesmo disse
Fernanda Honorato no programa da Xuxa, a integração começa em casa. Essa
autonomia é o que sonho todos os dias para meu filho.
[i]
A data escolhida
foi 21 de março (21 / 3) para representar a singularidade da triplicação
(trissomia) do cromossomo 21 que causa esta ocorrência genética.
wow!! lindissimo o texto! Parabens, e guarda tudo pra qdo Adam crescer reler e dividir tudo isso que tais criando, tecendo e dividindo. beijos
ResponderExcluirExcelente texto, parabéns! Idalina - Belém / Pa
ResponderExcluirFiquei emocionada com as suas palavras Deisy. Lamentavel a falta de de esti'mulo e de oportunidade, a exclusao social do seu ex-aluno, Davi.
ResponderExcluirTodas as maes desejamos o melhor para os nossos filhos, todas queremos que eles sejam felizes e auto'onomos, tenham ou nao SD, por isso entendo, perfeitamente o que voce fala sobre proporcionar o melhor para o seu filho aproveitando os avancos cientificos que estao ao seu alcance.